terça-feira, 24 de março de 2015

 
Uma vez eu dividi apartamento com um garoto que cantava Sidney Magal embaixo do chuveiro. Não importava o estado de ânimo, se estava alegre ou triste, se era inverno ou verão, o repertório não mudava. Seguido ao barulho do chuveiro, do vapor que saia por baixo da porta, do perfume suave e adocicado de sabonete, logo se ouvia uma voz grave cantarolando Tenho / um mundo de sensações / um mundo de vibrações / que posso te oferecer.

Houve então um dia em que fomos a um karaokê. E a música escolhida por ele foi a mesma. O peito estufado, a voz firme de barítono, um sorriso de ponta a ponta, fez todo mundo parar para vê-lo cantar. E o garçom trouxe até um drinque ofertado por alguém que assistia e se encantou com a performance. Mal sabiam que tudo aquilo vinha sendo ensaiado, pacientemente, todos os dias sob pingos vaporosos. Hoje, quando sinto saudades dele, escuto a canção.

Na maioria das vezes em que estou lendo algum romance, tenho o hábito de imaginar alguém que conheço como se fosse os personagens. E isso é esquisito, porque toda vez que olho para um amigo específico, enxergo a Macabéa. Tenho também convicção de que Daniel Galera se inspirou em uma outra amiga para criar Anita van der Goltz Vianna, do livro “Cordilheira”.

De um antigo amor, herdei o gosto por Guns N'Roses. E semeei o gosto por Caio Fernando Abreu.

Tive uma colega de trabalho que não tomava nada alcoólico e pedia sempre suco de goiaba quando ia com a galera pro barzinho.

O perfume Thaty, do O Boticário, será sempre o cheiro da minha mãe. E a música La Mer, do Ray Conniff me fará sempre lembrar dela dançando com a vassoura enquanto faxinava.

Saias de tule, canja e garrafas de absinto eternamente terão o poder de me transportar a situações engraçadas que tive o prazer de vivenciar.

Assim como, até hoje, sou capaz de fechar os olhos e sentir o sabor do bolo do meu aniversário de 25 anos, o que me faz lembrar de todas as pessoas que estiveram comigo naquele dia.

Há ainda os amigos que não possuem conexão alguma com coisas que, mesmo assim, me fazem lembrar deles. Quando escuto Amy Winehouse, por exemplo, me vem à cabeça lembranças de uma grande amiga que atualmente é cristã fervorosa e nada tem a ver com a Amy (talvez os trejeitos, ou nem isso).

Há também inúmeras pessoas e situações que, talvez por estarem tão inconscientemente inscritas e fazerem parte do cotidiano, é inviável representá-las em forma de objetos ou qualquer outra coisa que não seja abstrata. Estas repousam no escaninho dos afetos indizíveis e das experiências inarráveis. E, nem por isso, menos importantes.

Saudosamente olho ao redor e, de um simples exercício de reflexão, emerge a compreensão de porquê tantas coisas acumuladas, e tidas como extensão daquilo que sou. Livros ao lado da cama, discos, cartas, dedicatórias, fotografias, anotações em guardanapos amassados, papel de bombom, tampa de garrafa, conchinhas, folhas secas, vidros de perfume. Em maior ou menor grau, todas representam algo que serve de acalanto. Um relicário.

Em contrapartida, como forma de evitar as más recordações, já rasguei muitas fotografias, já doei muitos livros para o sebo e fujo de muitas melodias. Ainda que, tais coisas, em determinadas ocasiões, persistam em latejar.

Vejo o horizonte enegrecido e estou quase certo de que irá chover.

Um comentário:

  1. Wow, que baita!! ...faltou dizer "cronista" tb, e dos bons!! Amei, amei, amei!! *...tem dias que somos protagonistas e noutros, meros expectadores. Beijos pra ti guri

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